domingo, 10 de julho de 2011

Sammael, uma história.

Um rapaz brincava com uma pequena chama azul fazendo-a saltar de mão para mão. Embora estivesse quente, não parecia afectar as suaves mãos do jovem. Este encontrava-se numa sala escura e húmida, com paredes cobertas de musgo. Uma brisa corria contra aquelas paredes nuas, mas isso não o incomodava.
A única fonte de luz provinha da chama que passeava pelas suas mãos e iluminava pouco mais que um metro em seu redor. O rapaz tinha cabelo vermelho, estatura média e nos seus olhos brilhava um fogo estranho, arrepiante. Era um fogo de triunfo.
- “Então isto é o que espera o mundo dos Homens. Diz-me rapaz, porque o fizeste?” – Disse uma voz do meio das sombras.
A chama parou, começando a pairar sobre uma das mãos. Algo o incomodava naquela voz. Era demasiado serena e paternal. “Não sentia o dono daquela voz medo do seu poder? Não tinha ele receio do que podia fazer?”
- “Eles estavam a atrasar-me. A impedir-me de progredir.”
O seu olhar foi trespassado por um rasgo de ódio e a chama na sua mão aumentou de tamanho. Todos aqueles que presenciaram o seu crescimento tiveram inveja. Foi sempre posto de parte. Desde A Bênção que todos o olhavam de lado. Mas ele estava farto. O alcance da luz aumentou e agora podia-se vislumbrar as pernas de vários corpos espalhados pelo chão. Tinha decidido abandonar aquele lugar e partir com aquilo que lhe pertencia por direito, a fim de se tornar O Mais Poderoso.
- “Achaste então que devias aniquilá-los todos? Muitos deles tinham tanto poder como tu ou talvez até mais.”
O rapaz riu-se. Era um riso frio, cruel, perverso, livre de qualquer emoção. Capaz até de gelar os ossos. Um riso pouco adequado para um rapaz daquela idade.
- “Tanto ou mais poderosos que eu, dizes tu? Pois estás enganado. Todos sucumbiram perante o meu poder. Nenhum sobreviveu. E agora que nada me prende aqui, posso ir buscar aquilo que desejo e abandonar este lugar, para sempre…” – O rapaz voltou a brincar com a chama, mas o seu pensamento estava longe dali, o passear da chama fê-lo entrar em transe.
Algo o trouxe de volta ao corpo, alguém falava com ele. – “…fazer agora? Vais continuar aí a brincar com essa chamazita?” – Das sombras veio um riso sarcástico, parecido com um latido.
- “Uma chamazita dizes tu…” – Disse. – “Repara então quão pequena é a chama que levou a vida a todos os que se encontravam neste edifício.
Dito isto, parou de rodar a chama e olha para a sombra, para o lugar de onde vinha a voz. O fogo nos seus olhos tornou-se ávido e brilhou intensamente. A chama elevou-se em direcção ao tecto e, centímetro a centímetro, os cadáveres foram sendo abrangidos pela sua luz. Tudo aconteceu num instante. O rapaz fechou a mão e a chama explodiu. Os corpos foram projectados pelo ar. As paredes racharam e o musgo pegou fogo. O ar ficou seco e incendiou-se. O rapaz levantou-se. O fogo dos seus olhos dançava como nunca e ele ria-se. Um riso louco, maníaco.
Acabou tão depressa quanto começara. A chama desapareceu. Os olhos ficaram inexpressivos. E a divisão, outrora húmida e cheia de cadáveres, estava agora reduzida a uma sala negra com o chão repleto de cinzas. Da voz não havia rasto. E o rapaz, contente com o que tinha feito, abandonou a sala, com indiferença, em direcção ao seu objectivo.
Um silêncio imperturbável reinava nos intermináveis corredores. A escuridão que se instalara era apenas quebrada pelo luar que atravessava as pequenas janelas. Estava uma noite limpa de Lua cheia, sem o mais leve indício de nuvens. Uma leve mas fria brisa corria pelos campos, fazendo as copas das árvores estremecerem. O rapaz olhou por uma janela. Dali conseguia avistar as montanhas que rodeavam a escola, bem como a floresta. E, numa noite tão clara e límpida, podia distinguir o fumo proveniente de Irnigarn, uma povoação situada na orla da floresta, perto dali. Ao longe podia-se distinguir o leve correr do rio de águas frias Etherdel, proveniente da grande montanha Nebura. Pela primeira vez, o rapaz ostentava uma expressão preocupada. “Lobisomens.” – Pensou.
Depressa abandonou aquela visão para voltar à escuridão e ao silêncio que envolviam aquele lugar, outrora alegre e cheio de gente. O rapaz avançava com cautela pois conhecia demasiado bem aquele lugar para poder achar que estava seguro.
Após vários minutos de uma caminhada monótona, sem qualquer alteração no ambiente, o rapaz parou. Tinha ouvido um barulho. Alguém estava vivo. Mas era impossível! Ele tinha matado todos os habitantes daquele lugar. Um por um. Assegurando-se de que não haveria sobreviventes. No entanto, ali estava ele, a ouvir um ruído que indicava haver gente viva.
- “Vamos ver quem ousa desafiar-me.” – Murmurou.
Avançou em direcção a uma porta de madeira decorada com cálices de ouro. A porta tinha o dobro do seu tamanho e, à medida que se aproximava, o barulho ia ficando mais forte. Era como o bater de um coração. Martelava, com ritmo, pausadamente, como se estivesse à espera de algo. O rapaz estendeu a mão para a porta. O ritmo aumentou, parecia agora o rufar de um tambor. Quando a sua mão tocou na maçaneta, um choque atravessou-lhe o corpo. “Não podia ser! Ele não poderia ter sobrevivido…” Rodou a maçaneta e abriu a porta de par em par. Era uma sala grande, com pouca mobília e a maior parte dela estava destruída. Largos pilares brancos, bem como grandes janelas em arco, enchiam a sala. O chão estava repleto de cadáveres e, ao fundo, encostado a uma parede sobre uma mesa, lá estava ele…
- “Já estava a ficar cansado de esperar por ti, Sammael.” – Disse o homem. Mas não era um homem normal. Era maior, mais largo, e assemelhava-se muito a um lobo. Agora que o via, não deixava de o achar mais repugnante. Estava parcialmente iluminado pela luz emitida por um corpo que ardia a poucos metros dele.
- “Que sabes tu sobre mim? Porque me persegues? Por acaso queres ter o mesmo destino que estes pobres idiotas?” – As mãos do rapaz começaram a incendiar-se. Era a mesma chama azul hipnótica. A raiva instalou-se nas feições de Sammael. “Porque é que não reages?”
- “Tem calma. Eu sou Alladarn. De onde venho, não é importante. Agora, para onde vais e o que vais fazer, isso sim importa.” – O homem dirigiu um olhar curioso a Sammael. – “ É uma pena que tamanho poder tenha que ser travado.” – Voltou a tomar uma expressão serena, desta vez com uma leve tristeza a pesar-lhe nos olhos.
A chama nas mãos do rapaz extinguiu-se. – “Impedido?” – Levantou uma sobrancelha e encarou o adversário com uma expressão de gozo. “Que pode ele fazer contra mim?” – “Nenhum dos alunos desta escola conseguiu deter-me. Os instrutores, em vão, tentaram. Nem a própria Madame Anathara conseguiu superar o meu poder. Perante estes acontecimentos, diz-me: Como tencionas fazê-lo? Um simples velho que nem sequer permanece tranquilo quando me aproximo?” – Um sorriso triunfal veio juntar-se ao olhar de regozijo que se instalar nas suas feições.
- “É de facto… desprezível, aquilo que fizeste com estas pobres criaturas. No entanto, estou disposto a tentar a minha sorte.”
O homem elevou-se a toda a sua altura. Tinha o dobro da altura de Sammael. De repente, Alladarn iniciou uma transformação. O seu corpo começou a crescer; os músculos dilataram-se; os olhos tornaram-se vermelhos, sem pupila; pêlo começou a nascer em todo o seu corpo; as roupas rasgaram-se e tanto os caninos como o seu rosto cresceram tornando-se semelhantes a um lobo. O ar tornou-se negro e condensado formando assim uma aura negra em volta da besta. O lobisomem rosnou contra Sammael e um odor a sangue e suor atravessou a sala.
Sammael recuou. A besta tinha agora o triplo do seu tamanho e olhava-o nos olhos. Alladarn uivou. Não era uma intimidação mas sim um chamamento, que foi correspondido logo a seguir por outro, e outro. Todos vindos da floresta lá em baixo. O lobisomem virou-se para o rapaz.
- “É aqui que a tua viagem termina, Sammael.” – Dito isto, impulsionou o seu corpo contra o jovem. Sammael, em estado de choque devido à sorte que tivera em enfrentar tamanho adversário, foi apanhado de surpresa pelo ataque e projectado até embater na parede com uma pancada seca. Um estalar medonho indicou que tinha partido pelo menos uma costela.
A custo, Sammael levantou-se. Não estava preparado para combater esta fera. Tinha que pensar em algo, talvez atacar… Mas era demasiado tarde. A besta já estava a fazer uma segunda investida. Desta vez não iria levar a melhor. Concentrando todo o seu poder, encarou a besta . O seu corpo começou a desvanecer-se e Alladarn atravessou-o como fumo, embatendo na parede, fazendo parte do tecto desabar.
Sammael vacilou, pois aquele feitiço exigia muito dele, mas não podia perder tempo. Retomando o equilíbrio, abandonou a divisão. Tinha que chegar depressa à biblioteca e agarrar nos livros. Os corredores silenciosos eram agora invadidos por ecos de latidos e correrias. Tinha que apressar o passo. Após passar por três salas, reparou que o barulho cessara e voltara a instalar-se o silêncio esmagador. Olhou pela janela e viu lobisomens a correr em direcção ao castelo. Quando se voltou para trás, o seu coração falhou uma batida. Um lobisomem estava a dois palmos dele. O odor a suor era agora maior e agoniante. Tinha que prosseguir. Empurrou o lobisomem e iniciou a corrida pelo corredor. A fera iniciou uma perseguição. Sammael corria o máximo que podia, mas tinha que fazer algo ou iria morrer. “Não! Não irei morrer às garras desta besta!”
O corredor dividiu-se em dois. Do lado esquerdo podia-se ver um lobisomem a correr na sua direcção. Sammael desviou-se da investida da fera, mas foi arranhado por outra que, partindo a porta de uma sala, tinha saltado contra ele. O rapaz parou. As criaturas abrandaram o passo até pararem. Apenas uma janela os separava. Não podia continuar esta corrida. Fez-se sentir uma brisa. As bestas não iriam permanecer paradas por muito mais tempo.
- “A presa tornou-se o predador. Olhem agora, pois a vossa destruição chegou!”
Os lobisomens emitiram latidos que faziam lembrar risos trocistas. Sammael concentrou todo o seu poder. O ar à sua volta começou a aquecer. Um olhar de raiva substituía o habitual olhar de desprezo e triunfo do jovem. As feras posicionaram-se, prontas a atacar. Sammael elevou as mãos e todo o seu ser incendiou-se. As criaturas recuaram perante aquele espectáculo. As chamas alastraram-se a uma velocidade estonteante, consumindo tudo no seu caminho. Os lobisomens bateram em retirada, para escapar às chamas. Corriam desalmadamente pelos corredores, mas os cavalos ardentes de fogo não conheciam nem barreiras nem cansaço.
***
Nessa altura, alguns  andares mais abaixo, Alladarn levantou-se empurrando o entulho de cima dele. Tinha que encontrar aquele miúdo antes que fosse demasiado tarde. Correu em direcção às janelas e começou a trepar o castelo pelas paredes exteriores. Uma forte luz intensa, alguns andares acima, indicavam-lhe que aquilo que procurava, encontrava-se ali. Após alguns minutos de subida, parou. Ouviu uivos de agonia. Os lobisomens estavam em sofrimento. Ele tinha que os socorrer. Não tinha dado nem dois passos quando uma janela no andar superior explodiu e com ela foram projectados três feras em chamas, uivando de dor. Alladarn abriu um buraco na parede, entrando no castelo. Era mais seguro prosseguir pelos corredores.
***
No andar superior o ar encheu-se de uivos de dor e quanto maior era a dor das bestas, maior era o poder das chamas e maiores os estragos que provocavam. O chão começou a estalar, assim como as paredes. As tapeçarias foram reduzidas a cinzas, bem como quadros, peças de mobiliário e as próprias bestas.
Sammael olhou para os estragos provocados. Tinha destruído os seus oponentes. Ou assim pensava ele. Ao fundo do corredor, surgiu Alladarn. Tremia de raiva perante os seus, mortos daquela maneira. Sem pensar duas vezes, investiu sobre o rapaz. Este que já o esperava, direccionou todo aquele fogo e, num rugido demoníaco, as chamas investiram contra o lobisomem. O embate fez o edifício estremecer. Sammael perdeu o equilíbrio e Alladarn foi projectado contra a parede. Esta cedeu e caiu, com o lobisomem, em cima dos portões do castelo. As chamas cessaram e o ar encheu-se com o odor acre a morte e a queimado. O rapaz sorriu com prazer e continuou o seu caminho, com o paço vacilante, em direcção à biblioteca.
Após subir dois andares, Sammael parou para descansar. Estava exausto e as dores provocadas pelos ferimentos não facilitavam o percurso. O rapaz estremeceu. Ouvira um latido ao longe. A noite ainda ia jovem e o perigo não dorme. Levantou-se e continuou a marcha. Já faltava pouco e, uma vez na posse daqueles livros, poderia sair daquele maldito lugar.
A meio do corredor parou. Havia uma sombra no luar que atravessava a janela. As nuvens haviam regressado àquele lugar. Uma ventania substituiu a leve brisa que corria. Lá em baixo, as árvores dançavam ao sabor do vento. Não poderia ter pedido mais. Aquelas nuvens eram o bilhete de saída para longe dali. Tinha que o aproveitar. Acelerando o passo, dirigiu-se para a biblioteca. Após virar a esquina encontrou o que precisava. Ali estava ela, a porta para a biblioteca.
Era uma porta quadrada, trabalhada em mármore e ouro maciço. Tinha o dobro da altura do rapaz e emitia um brilho próprio, alheio aos fios de luar que atravessavam o corredor. Sammael estendeu uma mão receosa para abrir a porta. Não tinha bem a certeza de que queria entrar naquela divisão, mas tinha que seguir em frente. Abriu a porta e encontrou uma divisão iluminada. Um fogo amarelo ardia no centro da sala. Apesar do vento que se arrastava pelos sombrios corredores, a chama não sofria qualquer alteração. Após uns breves instantes, durante os quais observava a chama, Sammael desviou o olhar e encarou o luar. Uma nuvem escondia a Lua, escurecendo a fachada do castelo. Estava uma noite maravilhosa. A sua atenção foi novamente desviada, desta vez para os livros. Algo murmurava entre eles…
Sammael avançou em direcção às estantes e, sempre em estado de alerta, caminhou entre as várias prateleiras, procurando a origem do som. Não se podia demorar muito. Aquilo que procurava, antes de ser atraído pelo barulho, estava algures por ali, e era imperativo sair dali quanto antes. A escuridão envolvia as estantes mais afastadas do fogo onde nem o luar ousava penetrar. O ruído aumentava de intensidade à medida que se aproximava. Mas algo estava errado. Aquele som não se assemelhava a nada que já tivesse ouvido. À cautela, acendeu a sua pequena chama, mantendo-a a rodar à volta das mãos. Esta depressa se multiplicou e, ao fim de pouco tempo, Sammael estava envolvido em chamas de tamanho variado que rodopiavam em seu redor. Subitamente o ruído cessou e Sammael estava agora mergulhado no silêncio. Ele não temia a sombra e, pela primeira vez, sentiu o receio invadi-lo. Sammael avançou, determinado, em direcção ao corredor formado pelas estantes. Estava vazio.
O rapaz inspeccionou a área. Nada se movia. Após alguns instantes abandonou o corredor, dirigindo-se às estantes que procurava. A biblioteca era uma divisão enorme. As estantes gemiam sob o peso dos livros. Depois de algum tempo de procura, encontrou aquilo que procurava. A estante estava repleta de livros negros. Não só de capa, mas também de conteúdo. Sammael analisou algumas lombadas e, quando encontrou os que precisava, agarrou neles e guardou-os. Eram grandes e pesados, mas a sua bolsa fora modificada para tal.
Percorreu a divisão com um último olhar. Era altura de abandonar o edifício para sempre. Sammael encaminhou-se para porta. Uma pequena luz dançava no umbral. Voltou-se para trás e viu a magnífica chama. Voltou para trás, desta vez dirigindo-se à chama. O calor que emanava desta inundou-o. Uma sensação de poder invadia a sua mente. Aproximou-se da chama e, num verdadeiro acto de loucura, subiu os degraus e caminhou para o fogo. Não o queimava. Ergueu as mãos. Os olhos, outrora pretos, eram agora de um branco imaculado. Sammael entrou em transe e o fogo começou a sofrer alterações. As chamas elevaram-se e o seu diâmetro aumentou. O fogo consumiu as estantes mais próximas. Sammael inspirou e as chamas fundiram-se no seu ser.

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