Gritos vindos do exterior faziam-se ouvir dentro da tenda. Thahan olhava em volta para os seus pertences. Era uma tenda simples, feita de um tecido igual a todos os outros. Uma secretária sem ornamentos ocupava o seu centro. A um canto via-se uma cama com os lençóis revoltos, noutro, um suporte com uma armadura. Não havia qualquer decoração para além de um tapete coçado que forrava o chão por inteiro.
“Este poderá ser o último dia que aqui entro.” – Pensou enquanto se encaminhava para um pequeno baú sobre a mesa.
Uma vez frente à secretária, retirou uma chave prateada que trazia presa a um fio e inseriu-a na ranhura. Uma volta e um sonoro click indicaram-lhe que estava destrancado. Com cuidado levantou a tampa. Estava cheio de papéis. Examinando um a um, Thahan esvaziou o baú. Mas não o abrira para olhar documentos. Dando uma pancada seca no fundo, activou um mecanismo que revelou um fundo falso. Hesitante, retirou o conteúdo da gaveta secreta. Eram fotografias. Homens e mulheres olhavam para ele, felizes, alheios a tudo o que se estava a passar.
Deixou as fotografias em cima da secretária e dirigiu-se para a cama. Com pesar viu os lençóis rasgados, fora de sítio, postos ao acaso. Não mais iriam os pesadelos atormentá-lo. Não mais iria acordar durante a noite, coberto de suor e a tremer. Isto era um adeus.
Após alguns instantes perdido em memórias, procurou com um olhar a sua armadura. Ainda ali estava, no suporte, coberta de pó. Tal como a tinha deixado ontem.
De repente, a tenda enche-se de luz. Virando-se para a porta, Thahan encontra o seu amigo e soldado Amthor à entrada, observando-o.
-“Que te trás por cá, irmão? Já te despediste da tua?”
-“Despedir?” – Inquiriu sorrindo. – “Isto não é um adeus, mas sim um até depois.”
-“Quem me dera poder partilhar a tua visão, mas não creio que voltemos.”
-“Ora essa! Somos os Guerreiros do Sol, Claro que voltaremos! Tal como volta o amanhecer depois de uma noite de trevas.”
-“Talvez tenhas razão… Talvez tenhas razão…” – Disse pensativo.
-“Parece que ainda não te vestiste. Despacha-te, estamos prestes a partir.”
-“E tu pareces desconfortável com alguma coisa…” – Disse encarando Amthor.
-“Perspicaz como sempre. ELE já chegou.”
-“Ah!”
-“Sabes bem como odeio aquela coisa. Como é que ele o monta? Devíamos banir estas bestas ou caçá-las até à morte!”
-“Vá, vá. Lembra-te que vais voltar, e ele não.”
-“Sim… Bem, vê se te despachas, se não vêm-te cá buscar nu e sem armas!” – Afastou-se rindo.
De novo sozinho na tenda, o desânimo voltou a apoderar-se de Thahan. Caminhando para o suporte observou maravilhado a sua armadura. Branca como a pérola, resistente… poderosa…
“E é assim que começa…” – Pensou enquanto pegava nas botas e as calçava. – “O mundo exige. Corrói. E a Lua desfaz.”
DRUM
“Os tambores soam ao longe, chamando por nós.” – Agarrou nas protecções para as pernas, e encaixou-as. – “O Sol ilumina o nosso caminho… Guia as nossas mãos… destrói os nossos inimigos.”
DRUM
“E no fim…” – Continuou enquanto vestia a cota de malha e a armadura que protegia o tronco. – “Somos julgados… Perseguidos… Atormentados…”
DRUM
“Mas não hoje… Não desta vez…” – Thahan calçou as luvas e apertou as fivelas ao longo da armadura. – “Hoje combatemos a corrupção! Hoje vencemos uma vez mais!”
DRUM
Os tambores eram agora mais intensos. Faziam vibrar a tenda. Faziam-no vibrar. Embainhando a sua espada, pegou no capacete e, uma vez preso debaixo do braço, dirigiu-se para o exterior.
Ao deslizar o pano de entrada viu-se forçado a cerrar os olhos. O Sol estava mais esplendoroso do que nunca. Talvez houvesse esperança para os seus Guerreiros. Com dificuldade encaminhou-se para o centro do acampamento. À medida que os seus olhos se habituavam à luz, Thahan viu vultos a saírem e entrar das diversas tendas que se estendiam pela planície. Um pedaço de terra pintado de branco pérola.
-“Aqui estás tu!” – Exclamou sorridente Amthor. – “Já nos estávamos a preparar para te ir buscar!”
-“Se isso fosse preciso, ainda estaria à vossa espera.” – Riu-se.
-“É bom ver-te animado.”
-“Tu também estás animado…” – Disse pensativo. – “Onde está Dwerwyl?”
O ar de regozijo de Amthor foi substituído por medo e raiva.
-“Está além! Perto do general.”
-“Então é para lá que vou.”
Deixando os seus soldados, Thahan encaminhou-se para a tenda do general. Esta ficava no cimo de um monte, oculta de todo o acampamento. Perto do sopé, viu uma sombra gigante escurecer o chão em sua volta e dirigir-se para a tenda do general. Pensou no fim e desembainhou a espada. Correu monte acima mas, apanhado de surpresa por aquela tenebrosa visão, tropeçou.
À frente da tenda do general encontrava-se uma besta gigante. O corpo coberto de escamas, dentes ferozes. Espigões revestiam a coluna, da cabeça à cauda. Duas grandes asas abertas de cada lado provocavam uma rajada de vento que sacudia as árvores mais próximas. E as pernas, grossos troncos com garras ameaçadoras. Um dragão. E montado neste, Dwerwyl.
-“Thahan! Encontrei-te finalmente.” – Disse saltando da sela.
-“O que se passa?”
-“Eles chegaram. Temos que ir. Os Guerreiros já estão a encaminhar-se para lá.”
-“JÁ!? Mas ainda tínhamos tempo… e o general? Já sabe?”
-“Sim, também já partiu. Apressa-te porque precisam do seu capitão nas linhas da frente!” – Dwerwyl voltou a trepar para as costas do Dragão.
-“Vemo-nos na batalha!” – Gritou enquanto se elevava nos céus.
Thahan viu-o desaparecer nas nuvens e correu monte abaixo, até ao centro do acampamento.
“Eles não podem ter chegado tão cedo. Como é que nenhum dos batedores nos avisou? Sol, não te esqueças dos teus filhos!”
O capitão percorreu o acampamento. Estava deserto. A azáfama da manhã tinha desaparecido. Não havia Guerreiros ali. Já se tinham todos dirigido para o vale. Todos, menos o seu capitão…
Alguns minutos de corrida bastaram para encontrar as suas tropas. Dispostos em fila, os Guerreiros do Sol olhavam receosos para o vale. Acompanhado o seu olhar, Thahan perdeu toda a esperança que tivera naquela manhã. Uma enorme mancha negra cobria todo o vale. As hostes do necromante Veldahar superavam em larga escala os Guerreiros do Sol.
“Como é isto possível? Como vamos vencer esta batalha? Estamos perdidos. A noite vai finalmente descer sobre nós… Dwerwyl… Onde estás? Não! Não posso abandonar os meus irmãos… Não tão perto do fim… Não nesta hora de necessidade.”
A passo decidido, Thahan dirigiu-se às linhas da frente, e virou-se para os seus homens. Os seus olhos espelhavam o mesmo medo que ele sentia. Não os podia censurar.
-“Guerreiros do Sol, irmãos! Hoje batemo-nos uma vez mais contra a sombra. Haverá um dia em que abandonaremos os nossos irmãos, mas não será hoje!” – Gritou, incentivando-os, enquanto caminhava de um lado para o outro, sem nunca deixar de os olhar. – “Haverá um dia em que perderemos a esperança e deixaremos de lutar pelos que amamos, mas não será hoje! Haverá um dia em que largaremos as armas e nos deixaremos consumir pela sombra, mas não será hoje! Porque hoje irmãos, lutamos! Hoje defrontaremos uma vez mais as hostes da sombra, e uma vez mais as destruiremos! Neste dia irmãos, o Sol brilha, uma vez mais!”
Desembainhando a sua espada, Thahan avançou sobre os seus inimigos. Um rugido vindo dos céus mostrou que Dwerwyl tinha já chegado à batalha. Inspirados por uma esperança que não era a sua, os Guerreiros do Sol seguiram o seu capitão.
-“PELA LUZ! POR UM NOVO AMANHACER!”
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