domingo, 10 de julho de 2011

Corrida pela memória

Dores insuportáveis dilaceravam-lhe a cabeça. Tentara levantar-se, mas em vão. Dois passos bastavam para fazer o mundo rodar e provocar-lhe náuseas.
Com esforço, Matt examinou o local onde estava. Aparentemente tinha sido arrastado até uma espécie de gruta. Sangue seco por cima da sua orelha direita indicava-lhe que ali tinha sido desferida a pancada que o pusera inconsciente. - “Mas porquê? Quem o teria feito?” – perguntou-se.
Após nova tentativa, decidiu-se ficar sentado e esperar. A simples ideia de andar, turvava-lhe a vista.
Esperou pelo que lhe pareceram dias antes de voltar a mexer-se. Com um derradeiro esforço, Matt levantou-se, apoiado à parede.
– “Só mais uns passos… E uns metros… E devo estar fora daqui não tarda.” – Pensou optimista.
Agarrou um bocado de madeira para usar como arma e avançou, lenta e cautelosamente, usando a parede onde se apoiava como guia.
Caminhou durante algumas horas até que o ruído de metal e gritos lhe chegou aos ouvidos.
– “Problemas?” – Perguntou-se Matt, optando depois por se dirigir ao local de onde vinha o barulho. - “Pior não posso ficar… Até a morte era bem-vinda agora.” – Pensou.
A custo percorreu o largo túnel. Quando estava a perder a esperança, viu uma luz ao longe. Ao que parecia, alguém tinha acendido uma fogueira numa pequena galeria, todavia, nada, nem ninguém, fazia barulho. Talvez se tivessem ido embora… – “E deixado a fogueira? Não…”
Depois de um momento de hesitação decidiu arriscar a sua sorte e, com um passo irregular, retomou a caminhada. Estava cheio de dores e o corpo pesava-lhe.
Após alguns passos hesitantes parou para escutar. Algo se movia. Ao que parecia, o que quer que fosse, dirigia-se num passo acelerado… na sua direcção! Apercebendo-se disso, Matt voltou-se para encarar o que aí vinha.
Um vulto negro, quase tão grande como o túnel, movia-se. A meia altura, seis olhos do tamanho dos seus punhos, brilhavam à luz da fogueira. Matt recuou às cegas em direcção à luz, mas o medo entorpeceu-lhe as pernas e, tropeçando, caiu no chão.
- “Estou perdido!” – pensou em desespero – “Acabou-se!”
A criatura aproximou-se. Matt fechou os olhos enquanto sentia o barulho de pinças perto de si. A escuridão envolveu-o. - “Deve ser a morte…” – Pensou. – “Nem é tão mau assim…”
De repente, ouviu gritos ao longe. Alguém chamava por ele… Mas agora, estava em paz. Sentiu uma dor aguda e o silêncio obliterou tudo.
Matt corria agora por um estranho corredor. Centenas de portas iguais preenchiam as paredes. Contudo, sempre que abria uma, deparava-se com um corredor igual, ladeado pelas mesmas portas. Após percorrer vários corredores desistiu da corrida frenética que iniciara.
– “Pareces perdido.” – Comentou uma voz atrás de si.
Virando-se, Matt reparou que o corredor que acabara de percorrer era agora uma pequena sala com cadeiras, uma mesa de buffet, estantes cheias de livros e uma lareira sem nada para além de cinzas de um fogo acabado à muito. Em pé, de frente para a mesma lareira, encontrava-se um homem. Usava uma toga simples, de modo a exibir um corpo grande e duro como rocha.
– “Pudera. Ao que parece, tenho andado a escolher a porta errada. Isto é alguma espécie de purgatório?” – Perguntou, aproveitando o silêncio que se instalara.
O homem voltou-se e dirigiu-lhe um olhar inquisidor.
– “Estou morto, não estou?”
– “A morte…” – Divagou. – “Quando brincamos com ela, não nos liga… Mas assim que o cansaço se apodera de nós, ela volta, terrível e impiedosa, para nos levar…”
O desânimo apoderou-se dele. Tinha tido esperança de ter sido só um sonho.
- “Não desesperes que a tua hora ainda não chegou.”
A custo, Matt levantou os olhos do chão e encarou o homem. Este estava a despir a toga.
- “O que está a fazer?”
O homem interrompeu o que estava a fazer e olhou como se aquilo fosse o comportamento mais normal do mundo e Matt não tivesse bom da cabeça.
- “Pensava que querias viver.”
- “E quero…”
- “Mais do que qualquer outra coisa.”
- “Sim, mas…”
- “No entanto, pareces receoso.”
- “Muito bem.” – Disse Matt, por fim. – “O que pretende fazer? Despir-me também?”
- “Percebeste mal rapaz.” – Disse rindo-se. – “Vês aquelas duas adagas presas pela lâmina no tecto? Óptimo. Uma delas é para ti. Eu sou Gorbuk, o Guardião das Portas. E tu, Matt, o Jovem, tens que me derrotar, ou é o Grande Abismo para ti.”
Matt não estava seguro quanto às suas possibilidades. Ele era possuidor de um físico que invejava ferreiros e guerreiros, mas Gorbuk superava-o com uma grande margem.
- “Que assim seja.”
Subindo para uma cadeira, saltou em direcção à sua adaga. - “Tenho que ser o mais rápido!” – Pensou. Sentiu a mão fechar-se em roda do cabo, quando subitamente algo o puxou para baixo e o atirou contra uma estante. Livros caíram-lhe em cima. Com os olhos lacrimejantes viu que Gorbuk estava já de arma na mão. Um olhar rápido disse-lhe que a sua ainda estava presa ao tecto.
- “Por vezes, até os campeões perdem qualidades.” – Disse o Guardião em tom passivo.
- “Campeão?” – Inquiriu Matt confuso.
- “Ah! A memória! Outro maravilhoso instrumento… Mas a mim parece-me que tu continuas ainda a correr pela tua.” – Dito isto lançou a sua faca. Matt, apanhado de surpresa teve apenas velocidade para erguer o maior dos livros que tinha caído sobre si. Com um baque, a adaga espetou-se no livro.
Aproveitando a perplexidade do seu adversário, arrancou a arma e avançou sobre Gorbuk. Com movimentos velozes, cravou a adaga na coxa direita do Guardião e, enquanto este se dobrava, berrando de dor, Matt retirou a outra adaga do tecto e perfurou-lhe o ombro.
Gemendo de dor e com dois membros incapacitados, Gorbuk, com um último esforço, lançou-se sobre o seu inimigo. Este, desprevenido, foi esmagado contra a parede. A pancada fizera sair todo o ar dos pulmões. Com a vista turva e o sabor a sangue na boca, deu uma cabeçada no Guardião e, arrancando a adaga da perna, desferiu o derradeiro golpe, cegando-lhe o olho direito.
Gorbuk, a uivar de dor, recuou tropeçando.
- “Afinal não estás tão esquecido quanto isso.” -Comentou sorrindo, entre vários gemidos.
- “O que sabes tu sobre mim?” – Perguntou espantando com a sua própria actuação.
- “Tudo o que conta a história de Matt, o Jovem. Em tempos um guerreiro talhado para a guerra, um herói entre o exército de Faldir. Depois de perderes a fé no teu Rei, decidiste seguir outro caminho…”
- “O caminho da caça…” – Completou lembrando-se.
- “Exacto. Contudo, o caçador tornou-se a presa e a morte já não te segura mais. Por isso sugiro-te que voltes se não queres perder os teus companheiros.”
- “Leva-me de volta!” – Suplicou Matt, pensando em Anna.
Gorbuk levantou-se e, a custo, mostrou duas portas abertas que até então estiveram ocultas atrás de si. – “A vida é cruel e a morte caprichosa. A porta da direita salva Surn. A da esquerda Anna. Agora escolhe, Campeão: o teu irmão ou a tua mulher.” – Dito isto, o Guardião desapareceu, deixando Matt sozinho com a morte.
As palavras ecoavam-lhe na cabeça “…irmão…”, “…mulher…”. A escolha era dolorosa e o tempo escasseava.
- “Tenho que os salvar!”
Tomado pela loucura, fechou os olhos e correu contra as portas. Que o Destino o guiasse. E então um clarão branco e novamente silêncio.

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